Os analistas políticos ainda se debatem para decifrar os enigmas dos protestos de junho. Mas ao menos um consenso parece estabelecido: tamanha mobilização, em uma sociedade historicamente apática, seria impensável sem o respaldo da internet. As redes sociais disseminaram fotos, vídeos e relatos da violenta repressão policial aos manifestantes convocados pelo Movimento Passe Livre e atraíram centenas de milhares para ocupar as ruas das principais capitais.
Não é a primeira vez que as mídias eletrônicas servem como instrumento de mobilização. Em 2011, operários da usina de Jirau, em Rondônia, iniciaram uma das maiores revoltas trabalhistas da história recente do País e destruíram parte do canteiro de obras. O distúrbio começou horas após os trabalhadores compartilharem insatisfações por torpedos de celular. Naquele mesmo ano, bombeiros do Rio de Janeiro promoveram um motim em pleno quartel, e angariaram apoio da população por meio do Facebook e do Twitter. De lá para cá, são incontáveis os atos que ganharam força após uma articulação online.
O cenário permite supor a emergência de uma democracia digital, na qual os cidadãos conectados à internet tornam-se protagonistas do debate político, sem a mediação da mídia tradicional ou a tutela de partidos ou sindicatos. Essa visão idílica, repetida à exaustão pelos entusiastas da rede, tem sido, porém, cada vez mais contestada.
Se é verdade que as redes sociais têm potencial para atrair milhares de cidadãos às ruas, também é verdade que a mobilização na internet nem sempre ganha vida no mundo offline. Após reunir mais de 800 mil adesões para uma greve geral convocada pelo Facebook, o mineiro Felipe Chamone, músico que nunca teve ligação com sindicatos, surpreendeu-se ao notar que o dia 1º de julho, marcado para a paralisação, amanheceu como outro qualquer. Em 7 de setembro, os esvaziados protestos contra a corrupção (do governo petista, registre-se) só não passaram em branco por conta da atuação dos Black Blocs.
Não é apenas a dificuldade de transformar o ativismo virtual em realidade que alimenta as críticas. A mesma plataforma mobilizadora abriga manifestações de ódio contra negros, nordestinos e gays. “Em 2006, havia pouco mais de 20 células neonazistas ativas na internet brasileira. Hoje, são mais de 300”, alerta Thiago Tavares Nunes de Oliveira, presidente da Safernet Brasil, entidade dedicada a monitorar crimes na rede mundial de computadores.
Além da atuação de criminosos, tornou-se corriqueira a ação de provocadores, os chamados trolls, para interditar o debate político com comentários agressivos, repletos de acusações e xingamentos. Os ataques movidos pelo fígado afastam do debate quem busca argumentos racionais. Nos jardins murados do Facebook ou do Twitter, os mais comedidos optam por selecionar criteriosamente sua lista de amigos ou seguidores, uma forma de assegurar um debate mais civilizado.
Mas com quem? “Normalmente, com quem compartilha dos mesmos valores e posições partidárias”, avalia Oliveira. O fenômeno é apontado por diversas pesquisas, como os mapas relacionais elaborados pelo Labic.net da Universidade Federal do Espírito Santo. Temas como a importação de médicos estrangeiros e o voto do ministro Celso de Mello no julgamento do “mensalão” resultam em um Fla-Flu com as torcidas separadas por alambrados virtuais, a reforçar suas próprias convicções e sem qualquer ponto de convergência.
A avaliação não é, porém, consensual entre os especialistas. “Hoje, o jogo é muito mais democrático. Antes da internet, o cidadão era um mero receptor de informação e o oligopólio da mídia sempre foi avesso à diversidade de opinião”, avalia o sociólogo Sérgio Amadeu, professor da Universidade Federal do ABC. O debate tende a ser mais agressivo nas redes sociais, ele reconhece, até pelo fato de os interlocutores estarem distantes ou protegidos por perfis anônimos. Não vê ameaça. “Não devemos debelar o conflito, e sim conviver com a divergência. Há troca de acusações na web, mas espaço para a defesa. Antidemocrática é a censura imposta por certas empresas, que bloqueiam conteúdos a pedido de indivíduos ou empresas mesmo sem ordem judicial.”
Professor de Teoria da Comunicação na Universidade Federal da Bahia, Wilson Gomes admite ser comum a formação de guetos ideológicos, mas ressalta que a exposição inadvertida a pensamentos divergentes é muito mais comum no mundo virtual. “Antes da internet, só havia discussão entre amigos, geralmente da mesma classe social. Nas redes sociais, o sujeito pode até buscar esse isolamento, mas vai acabar se deparando, cedo ou tarde, com a opinião diferente de um parente distante ou seguidor desconhecido.”
Na avaliação de Renato Lessa, cientista político da Universidade Federal Fluminense, uma das maiores virtudes das redes sociais é a capacidade de pautar temas ignorados pela mídia tradicional. Não fossem as denúncias disseminadas pela web, por exemplo, poucos dariam atenção ao desaparecimento de Amarildo de Souza, após ser levado para averiguação policial na Favela da Rocinha, no Rio. O caso ganhou o noticiário após a repercussão nas redes sociais e cinco policiais militares devem ser indiciados pela tortura, morte e ocultação do cadáver do pedreiro, ainda que seu corpo não tenha sido encontrado. A desvantagem, pondera, é a falta de aprofundamento das discussões em um ambiente no qual a instantaneidade da informação impera. “Não há um debate político de fato. O que existe é muita mobilização, mas com uma polarização exagerada”, diz Lessa. “Nos protestos de junho, não havia pauta de reivindicação clara, tampouco emergiram novos atores políticos.”
A tese é rechaçada pelo antropólogo Antonio Risério. “Há muita confusão entre crítica e pessimismo. Aristóteles acusava a escrita de ser responsável pela destruição da memória. Uma grande bobagem, não?”, provoca. “A surdez e a cegueira ideológica existem desde sempre. Sou da geração de 1968, e posso te garantir que os grupos políticos só pregavam para seus convertidos. Hoje há muito mais debate do que naquela época.”
Fonte: Carta Capital
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